O terreno no qual foi construída a comunidade Pinheirinho faz parte da massa falida da empresa Selecta de Naji Nahas. Inicialmente, para tratar de tal caso, precisa-se desfazer o mito de igualdade de oportunidades. Principalmente em um país historicamente marcado pelo colonialismo e pela escravidão como o Brasil. Peter Singer expõe que “a igualdade de oportunidades é praticamente irrealizável”, devido às diferenças de capacidades, contextos, histórias, e deixa clara a necessidade de “tratamento preferencial a membros de grupos menos favorecidos” (Singer 2009, 54). No caso tratado temos os interesses de famílias que buscaram ocupar uma área abandona para construir suas moradias na periferia da cidade de São José dos Campos e do outro lado temos os interesses de um especulador financeiro que chegou ao país com “ao menos 50 milhões de dólares para investir” (Carta Capital 2012). No conflito entre um interesse fundamental, a moradia, de milhares de pessoas e interesses financeiros do dono de uma empresa falida, prevaleceram esses últimos.
Por quase uma década, mais de cinco mil pessoas moravam na comunidade Pinheirinho. No dia 22 de janeiro de 2012. A operação com mais de mil indivíduos da polícia militar do estado de São Paulo e da guarda municipal da cidade de São José dos Campos se iniciou às seis da manhã de um domingo. Não só sem aviso prévio, mas em desrespeito a um acordo prévio que adiava a reintegração de posse e a uma decisão da Justiça Federal contra a desocupação. A operação deu-se com a utilização de bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e há relatos de tiros de armas de fogo, assim como de morte de moradores.
Diversos relatos, matérias, fotos e vídeos difundidos pela rede de computadores expõem a desproporção da ação policial, que contou com helicópteros e com a tropa de choque. Do outro lado, pessoas correndo com alguns poucos pertences, tentando se proteger dos ataques. Mesmo a anterior elaboração para alguma resistência por parte das pessoas moradoras, que se constituía por materiais improvisados, como galões de plásticos e antenas transformados em escudos, possuía um valor simbólico maior do que prático, tendo em vista que não podia se comparar aos aparatos não letais e, como visto em vídeos e relatado pelos presentes no desalojo, letais da polícia. Além desse fato, tal resistência não se deu efetivamente. Um acordo que suspendia a reintegração de posse por 15 dias - conciliado entre advogados das pessoas moradoras de Pinheirinho, representantes políticos federais e estaduais, e representantes da massa falida da empresa - tranquilizou momentaneamente as pessoas, desestruturando uma possível resistência e incidindo, às seis horas da manhã de um domingo chuvoso sem avisos prévios, sobre as famílias que residiam no local. “O elemento surpresa foi o sucesso da ação, segundo a PM” (Estadão 2012).
A urgência da reintegração de posse não foi justificada por nenhuma das instâncias envolvidas. Divulgado em sítio virtual de notícias (G1 2012), o governador de São Paulo afirmou que não havia outra opção senão acatar e executar a decisão judicial: “A decisão é uma decisão judicial, que a polícia é requisitada para fazer a execução”. A afirmação aplica à situação um tom meramente prático, ou seja, em detrimento ás questão ético-políticas imbricadas no caso. O prefeito da cidade de São José dos Campos afirma em vídeo divulgado no sítio virtual da prefeitura, originalmente publicado virtualmente por sítio de notícias (Vnews 2012), que existem “só 250 famílias em abrigamento”. Como também que “o número é de 2850 pessoas e não de 8000 como eles [movimento social] disseram esses anos todos”. Afirmações que parecem buscar uma amenização dos fatos por meio da redução do número de pessoas atingidas, acabam por demonstrar a desproporção ainda maior da ação da polícia estadual e municipal.
A tentativa dupla de amenizar as ações governamentais e desqualificar o movimento social se desenvolve no discurso do prefeito. Sobre a discrepância dos números apresentados pelo movimento social e parte da mídia ele afirma que “como era um gueto no qual ninguém podia entrar ninguém podia conferir esse número”. Alastra-se a partir de tal discurso aquele elitismo de defesa das áreas tidas como civilizadas, ou seja, “castelos neo-feudais, [...] enclaves fortificados” (Santos 2010, 45) das classes privilegiadas, na qual a circulação é controlada, mas com o objetivo de proteger aqueles indivíduos ricos dos conflitos urbanos, esses que as classes mais pobres são obrigadas a enfrentar.
Essa tentativa de desqualificação não tem como origem apenas as instâncias oficiais envolvidas, mas também a mídia tradicional. Em blog vinculado à revista Veja, sugere-se que existia uma “milícia ideológica” (Azevedo, 2012) que dominava área da comunidade. Sem nenhuma fonte exata ou relato específico o autor do blog se coloca ao lado da “verdade”: “a verdade liberta, sempre. A mentira mata em silêncio”. Importante salientar, que o título do texto postado é “Você não verá na imprensa politicamente correta”. Tal título se compreende ao ler alguns artigos publicados na revista Veja pelo autor do blog. Termos como “esquerdopata”, “esquerdismo bocó”, “ideólogo” repetem-se, assim como “petistas”. Torna-se explicita a posição do autor como “oposição” na tradicional batalha entre os que estão no poder e os que querem o poder. Tal posição coloca-o na situação de “provocador”, antes figurada pelos atuais governantes. Ou, como já mostrado, daquele que supostamente está ao lado da verdade, não da ideologia. Importante salientar que tanto esquerda quanto direita mantêm-se vivas devido à democracia representativa, aquela na qual os indivíduos não podem tomar decisões políticas efetivas e diretas (como no caso de uma ocupação), mas meramente podem optar por um político profissional para representá-los. Na tradicional batalha entre esquerda e direita, entre políticos e ideólogos profissionais de ambos os lados, a população acaba subordinada e suas lutas tornam-se plataformas partidárias, ao serem criticadas ou mesmo defendidas. Dessa forma, ressalta-se que a defesa dos interesses das pessoas moradoras da comunidade Pinheirinho não está associada diretamente à legitimação de todos os grupos e práticas presentes no local. “A diversidade moral define a condição humana” (Engelhardt 2009, 26). O moralmente ilegítimo encontra-se em grupos ricos e pobres, condomínios fechados na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro ou em Alphaville em São Paulo, ou nas favelas e ocupações urbanas. A ilegitimidade de algumas ações, como o suposto pagamento a uma “milícia ideológica”, não torna o interesse por moradia ilegítimo. Como também não torna ilegítimo o ato de adentrar em uma área abandonada, sem cumprir nenhuma função social, e solucionar o problema de moradia de milhares de pessoas.
Ao tentar não personificar o caso sob a figura do especulador envolvido em fraudes e corrupção, ou mesmo não remeter à infrutífera batalha entre esquerda e direita pelo controle de um sistema político no qual a defesa dos interesses da população pobre não é questão relevante, o que se apresenta é o modelo de cidade global. Aquele que expulsa de suas moradias os grupos mais suscetíveis, ou seja, os grupos mais pobres, de acordo com interesses financeiros de grupos privilegiados. O caso de Pinheirinho pode ser compreendido como o mais próximo do extremo dentre diversos casos, como o do bairro da Luz em São Paulo e das ocupações e favelas desalojadas e parcialmente removidas no Rio de Janeiro.
Os casos citados possuem em comum diversas denúncias de inconstitucionalidade e violação de direitos humanos, mas seu desenvolvimento é mantido. Tais casos exemplificam a formação do campo: espaço de suspensão do ordenamento normal e a “materialização do estado de exceção” (Agamben 2002, 181). Sobre o campo “qualquer questionamento sobre a legalidade ou ilegalidade daquilo que nele sucede é simplesmente desprovido de sentido” (Id, 177). Ele está fora do ordenamento jurídico normal, mas como espaço no qual o estado de exceção é permanente, o que o comanda é a decisão soberana sobre as vidas presentes nesse campo. Seus soberanos provisórios são os policiais com seus sprays de pimenta, bombas de efeito moral, armas não letais e letais.
O caso Pinheirinho é um exemplo efetivo de campo. Nele “se cometam ou não atrocidades não depende do direito, mas somente da civilidade e do senso ético da polícia que age provisoriamente como soberana” (Id, 181). Nesse sentido, a imprensa foi impossibilitada de entrar na comunidade durante o processo de desalojo. Segundo um membro da polícia militar em vídeo divulgado pelo sítio virtual Passa Palavra tal impedimento se deu por “questão de segurança” 14. Dessa forma, busca-se a instituição de um espaço no qual o que se comete por meio da decisão soberana policial não repercute na estrutura política “democrática”. No entanto, os vídeos da tamanha desproporção da ação policial em ataques nas zonas de triagem criadas pela própria prefeitura e nos abrigos improvisados, assim como os vídeos feitos pelas pessoas dentro da comunidade, expuseram o cerne da democracia representativa brasileira, aquela que se apóia em um poder soberano, que decide sobre vida e morte das pessoas.
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